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Famalicão

Vozes e rostos da missão de salvar vidas em Famalicão

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Para ajudar a assinalar os seus 15 anos, o OPINIÃO PÚBLICA foi ao interior do Serviço de Urgência Médico Cirúrgico (SUMC) da recentemente criada Unidade Local de Saúde (ULS) do Médio Ave.

Fomos falar e dar voz àqueles que, para muitos são heróis, para outros são vilões. Aqueles que eram aplaudidos em tempos de pandemia e agora são vaiados quando querem fazer valer os seus direitos, e usam a greve como sua arma de defesa.  

Mas afinal quem são estes homens e mulheres que estiveram e estão na linha da frente na defesa da nossa saúde? Que trabalho fazem nas urgências? Como passam o seu dia de trabalho? O que sentem? O que vivem? Como reagem em situações de pressão?

O que escondem os seus rostos?

São estas e outras perguntas que vamos tentar responder nesta reportagem, que quer dar voz e cara aos que têm como missão salvar a vida dos outros.

Carla Melo é um desses casos. É internista nas urgências de Famalicão e à pergunta “como é trabalhar no SUMC?”, a resposta sai em flecha. “É muito cansativo… Temos um hospital pequeno para as necessidades dos concelhos que servimos, (Famalicão, Trofa e Santo Tirso). Não temos pessoal que chegue, não temos espaço que chegue, não temos material que chegue, faltam camas, faltam macas, falta escoamento do serviço de urgências… É uma luta enorme”, diz a médica que, sem rodeios, reclama mais reconhecimento para todos os profissionais. “Gostava de poder ter uma cama para cada doente, os computadores estão completamente obsoletos… Eu, pelo menos, já tive que mudar de portátil umas quatro vezes e os computadores daqui são os mesmos. Os profissionais ficam cansados”.

E a vida pessoal? Como é a vida pessoal de quem passa tantas horas no hospital? Perguntámos.

“Não é fácil. Ainda por cima tendo o meu marido a trabalhar cá como enfermeiro. Obrigatoriamente, levamos sempre o trabalho para casa, falámos do nosso dia, conversámos sobre as questões organizacionais do hospital…e muitas vezes é difícil desligar”, diz Carla Melo, que é famalicense e abordada na rua por pessoas que já atendeu no hospital. “Muitas vezes ouço falar mal do meu serviço e isso custa”.

A conversa é interrompida pela campainha que anuncia a entrada de um paciente na sala de emergência. As três médicas de serviço saltam das cadeiras para, rapidamente, avaliar o caso. Um idoso com insuficiência respiratória e bastante debilitado foi encaminhado pelo centro de saúde. Preocupadas, partilharam ideias e conhecimento e encaminham o doente.

Voltámos à conversa com Carla Melo que, questionada sobre que melhorias são necessárias no serviço, responde prontamente que é urgente “mais profissionais, mais espaço e melhores condições”. “Mas, acima de tudo, apostar na literacia, educar as pessoas para uma correta utilização dos serviços de urgência, apostar nos serviços de saúde primários, porque se eles funcionarem bem não há tanta necessidade de vir às urgências”.   

São 10h15 da manhã e a sala de espera está, anormalmente, tranquila. Mas à medida que as horas vão passando os doentes começam a entrar e a ocupar as macas nos corredores. A maior parte são idosos.

“Quero operar e não tenho maca”

No corredor passa, apressado, o diretor de cirurgia do hospital de Famalicão, Francisco Sampaio. Sem tempo a perder, o médico estava preocupado em arranjar uma cama para um doente que estava prestes a operar. “Esta logística das camas e macas é muito complicada, tenho um doente pronto no bloco para operar, mas não tenho cama para ele, no final”, desabafa, entre vários telefonemas para arranjar solução.

No serviço de Urgência de Pediatria o ambiente estava calmo. No atendimento estava a pediatra Sara Teles Lopes, que frisou que este serviço para atender os mais pequeninos é uma mais valia.

“Antigamente as crianças eram vistas na urgência, junto das outras pessoas, e nem sempre por médicos da especialidade”.

As enfermeiras Elsa Ribeiro, que já trabalha no hospital há 16 anos e a enfermeira Sandra Alves, que trabalha no hospital há 20 e nas urgências há 16, são especialistas em pediatria.

“Às vezes a falta de espaço dificulta, mas em termos de recursos humanos estamos a trabalhar bem melhor agora do que há uns anos atrás”, diz Elsa Ribeiro. Já Sandra Alves salienta que “para além da urgência pediátrica temos que dar apoio à urgência geral, e as principais dificuldades são mesmo as emergências e tratando-se de crianças é complicado”.

A manhã ia passando e o serviço de urgência de adultos ia enchendo. Sala Saw, médica de clínica geral já trabalha em Famalicão há mais de 20 anos. Quando lhe perguntámos sobre as principais dificuldades que sentia no seu dia a dia de trabalho disse que “é muito cansativo porque são muito doentes”. “O pior são as pessoas que recorrem ao serviço sem ser preciso, e posso dizer-lhe que já conheço bem algumas porque recorrem, com frequência, ao serviço e chegam cá sempre com as mesmas queixas”.

A manhã já ia longa. As urgências estavam agitadas e as camas ocupadas, sobretudo com idosos. O tema dos idosos é, aliás, recorrente na nossa reportagem. Os profissionais com quem falamos abordaram a questão, sobretudo ao nível da dificuldade em dar alta.

A enfermeira Catarina Brito era a responsável, neste dia, pela triagem, “um lugar de muita responsabilidade”. “A experiência ajuda-nos a perceber o estado do doente. Entra, vemos o aspeto dele e já conseguimos perceber alguma coisa”.

Sobre a percentagem de doentes que não devia ir às urgências, a enfermeira diz que, muitas vezes, “é frustrante porque estamos com o serviço cheio e vemos que a pessoa podia ter recorrido aos cuidados de saúde primários”. Em jeito de recado, Catarina Brito defende que se melhorasse a resposta dos serviços primários as pessoas não sentiriam tanta necessidade de vir às urgências.   

“Os idosos são abandonados aqui”

Depois de uma manhã atribulada, o médico Francisco Sampaio reservou uns minutos para falar para a nossa reportagem. Como cenário de fundo escolheu a sala de emergência “porque é, sem dúvida, o espaço que representa a conquista do serviço de urgências”.

E que mudanças trouxeram as novas instalações, agora com 15 anos? “Desde logo, o espaço. Quase que quadruplicámos o espaço em relação às antigas urgências. Depois, outra arma que ganhámos foi o TAC. Esses foram os dois marcos essenciais e altamente positivos para esta nova realidade de urgência”. Juntando a isso, o clínico falou no aumento de profissionais desde médicos, enfermeiros, pessoal técnico, auxiliares…

“Nas antigas urgências, a sala de emergência era um bocadinho a sala de tudo. Era sala de ortopedia, de cirurgia… Agora não. Temos aqui duas boxes completamente preparadas para o seu propósito, emergência ou uma qualquer eventualidade.

Quando falamos de dificuldades, o experiente clínico também menciona a afluência de doentes. “Nas antigas urgências também tínhamos muitos doentes, mas dávamos mais altas. A população era um pouco mais nova, e nós conseguíamos dar altas mais precoces. Já passaram 15 anos e, neste momento, temos uma população muito mais idosa, com mais dificuldades, com mais comorbilidades. Muitas vezes queremos dar alta e não conseguimos, por isso ficamos com o serviço de urgência emperrado, com necessidade de camas e macas para internamentos”.

Francisco Sampaio não é alheio aos problemas sociais e reconhece que uma das realidades que se enfrenta são os idosos “abandonados” nas camas do hospital. “São deixados pela própria família”, diz. E uma maca ocupada por estes casos tira a possibilidade de entrada de um doente trazido pelos bombeiros ou pelo INEM. “Essa é uma das nossas grandes dificuldades e ainda mais agora, nesta altura de epidemia da gripe”.

Outra realidade que traz muitas amarguras de boca aos profissionais da saúde é a quantidade de pessoas que recorre ao serviço de urgências sem necessitar. E isso acontece muito mais agora. “Isto de vir ao serviço de urgência porque aqui fazem-lhe análises ao sangue e Raio X representa um gasto enorme. De tempo de profissionais, de meios” diz o cirurgião, que reconhece que, muitas vezes, são os colegas dos serviços de saúde primários que não conseguem dar resposta em tempo útil. “O utente sente-se fragilizado e vem ao serviço de urgência”, explica.

Recentemente foi criado em Famalicão o serviço de cuidados intermédios. Uma mais valia da ULS do Médio Ave, que permite que os doentes não se desloquem para Braga ou Porto.

Recebe-nos o médico David Silva, coordenador desta unidade, que sublinha que foi um projeto desenvolvido por si e por Nuno Cardoso. “Começamos por reorganizar o serviço de urgência e criámos a unidade de cuidados intermédios”. Trata-se de um serviço de maior diferenciação, que permite tratar na instituição o doente crítico que antes era levado para outros hospitais de referência. “Agora não, uma grande parte é tratada cá, o que é uma coisa boa para todos. Antes de mais para o doente, que fica mais perto de casa, para a instituição que poupa dinheiro e para nós que conseguimos dar o melhor tratamento ao nosso doente crítico”. David Silva congratula-se com o facto de, nestes anos, esta unidade ter conseguido os meios e os profissionais para trabalhar. Mas o “verdadeiro problema” é o aumento de casos de doentes críticos, nomeadamente na população mais idosa. “Não adianta ter meios e profissionais se temos cada vez mais gente e não temos espaço para tratar”. Assim, para este profissional a solução passa por aumentar o espaço físico para estes serviços.

“É necessária uma ampliação”

O dia corre célere e atribulado. É a vez de falarmos com Pedro Raúl, enfermeiro gestor do SUMC, que destaca a “equipa jovem e numerosa” com quem trabalha. Neste momento, são 80 profissionais, mas mesmo assim, assume o enfermeiro, existem dificuldades para fazer face a toda a demanda num serviço de urgências como o de Famalicão. “O serviço de urgência é pequeno para a população que serve. É necessária uma ampliação, o que acredito que vai ser uma realidade com estas mudanças para a nova ULS. Que seja uma visão dos responsáveis a curto, médio prazo”, diz o enfermeiro Pedro que não deixa de sublinhar e “dar ênfase ao que temos de bom, que são as boas relações da equipa multiprofissional”. “Temos um bom empenho da equipa, nomeadamente de enfermagem, perante estas novas vivências e novas dificuldades, mas onde reina um sentimento de equipa e de bom trabalho em prol do cidadão”.

Entre médicos, enfermeiros e especialistas há inúmeras pessoas, com outras tarefas, que são cruciais para o funcionamento das urgências. Fernanda Maia é auxiliar de ação médica e, todos os dias, faz quilómetros dentro do serviço para tentar colmatar todas as exigências que uma casa cheia de gente lhe exige. Desde arrastar macas e camas, mudar roupas, levar doentes para aqui a para ali. “Há dias é que o trabalho que não para de aumentar”, diz-nos Fernanda, que não abranda o passo apressado.

“Há falta de pessoal auxiliar e é muito difícil. Falta gente que queira trabalhar. Muitas pessoas chegam cá e perante a dificuldade do trabalho desistem”, diz a auxiliar que gostava de dar mais atenção aos doentes. “Não é possível porque somos poucos para a exigência deste serviço”.

Saímos, deixando para trás um serviço de urgências lotado de gente, na maioria idosos, médicos que correm de um lado para o outro, enfermeiros sem mãos a medir, auxiliares que saem e entram do serviço, administrativas que lidam com uma sala de espera cheia de gente…

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