Famalicão
Arcipreste: “O poder das coisas simples. É este o anúncio da Páscoa”
Tudo passa, tudo é passagem… Nada é eterno, nada fica como começou…
Até esta pandemia, que nos atormenta há um ano, passará. E já mudou tanta coisa. E já nos mudou tanto. E tanta está ainda a mudar. O mundo já não é o mesmo e não voltará a ser como era. E nisso há esperança. É assim o dinamismo da criação.
A Páscoa é explosão, é luz, é vida e aviva em nós esse dinamismo, essa passagem… De facto, o termo Páscoa provém do hebraico Pessach e significa precisamente passagem.
A Páscoa, porém, não é uma mera passagem do tempo ou das coisas. A Páscoa é um ponte para uma outra margem, para uma outra forma de ver e viver a vida. E fazer esta travessia, esta passagem, exige audácia e criatividade, pede o desassombro e a abertura para um mundo novo, reclama a bravura e coragem para recomeçar. E recomeçar não é voltar a fazer o mesmo e do mesmo modo, voltar ao passado. Recomeçar é ter a capacidade de fazer novas todas as coisas.
A Páscoa é precisamente isso: ela traz a luz nova da vida onde predomina a escuridão, o medo, a angústia.
A Páscoa é esta passagem de tudo aquilo que nos escraviza e leva à morte (toda a espécie de mal) para nos conduzir à vida nova, à verdadeira liberdade (todo o bem).
Quem se atreve a esta passagem, a esta mudança!? Só quem tem a ousadia de sonhar, de sair do seu sofá, de iniciar uma aventura… Não se trata apenas de sonhar com um mundo melhor! Isso pode ser utopia ou ideologia desprovida de chão. O mundo precisa daquilo que dá sentido, que realiza, completa e dá plenitude à vida humana. Na Páscoa Cristã nós encontramos essa ponte entre uma humanidade à procura da sua plenitude e o próprio Deus de Jesus Cristo, que é o Deus da vida que move a vida, que faz novas todas as coisas, que abre horizontes de futuro, que volta a levantar os caídos, que volta a colocar em movimento a existência, que não condena mas faz recomeçar, dando sempre novas oportunidades.
Creio que este é o desafio da atualidade, quer para a sociedade quer para a Igreja. É o desafio de dar ao mundo um novo folgo, novos pulmões e no coração.
E este desafio joga-se no núcleo basilar e estruturante de qualquer sociedade: a família.
É aqui, nesta escola de vida e de liberdade, que é preciso apostar para que as mudanças (tantas vezes feitas à pressa e sem perspectiva de futuro) não sejam resultado de acontecimentos extraordinários, mas que aconteçam no ordinário do dia a dia. Não podemos apenas reagir, precisamos de ser mais proactivos e jogar por antecipação.
A aposta começa nas coisas simples de cada dia e da vida: cuidar da linguagem, educar para os afetos, cultivar a responsabilidade mútua, olhar pelos vizinhos, recomeçar no infortúnio, amar a vida, dar alento no desespero, chorar com os que choram, respeitar os idosos, brincar com as crianças, ajudar os que mais precisam, formar para a esperança, participar na vida da comunidade, rezar uns com e pelos outros, cuidar da natureza, perdoar a quem ofende, ser bem educado… Destas e de outras coisas simples da vida familiar se fazem os desafios da sociedade e da Igreja. Para os crentes, a Páscoa tem a capacidade de contagiar tudo e todos, com aquela esperança criativa, que dá força, audácia e coragem para tudo transfigurar. A Páscoa não nos ilude nem é uma poção mágica que nos livra das dores de parto da vida. A Páscoa é a vitória do amor sobre a raiz do mal, que transforma o mal em bem: é a marca exclusiva do poder de Deus.
Faço votos que a nossa Páscoa não seja a páscoa dos ovos ou dos coelhinhos de chocolate. Mas que a Páscoa verdadeira aconteça no seio de cada família, e que mexa com a nossa vida, a desinstala e a provoca a fazer a verdadeira passagem na mentalidade, no compromisso e na atitude. Que esta Páscoa nos encoraje a dar um empurrão a este mundo para o lado da vida nova, plena, realizada e fecunda.
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