Famalicão
D’Esguelha a Póstumo
Em Portugal, a escrita e a oratória, sempre foram artes circunscritas aos “intelectualóides”, resultando numa ainda maior descrença e pobreza deste País. Quando o domínio das duas maiores ferramentas de divulgação de informação é associado a uma comunidade que se julga do “caralhão”, só por utilizar vernáculos de alto eruditismo e construções gramaticais complexíssimas, as probabilidades de termos um País informado são tão altas como as probabilidades do mesmo se exonerar da dívida do BES.
Gouveia Ferreira, alienando-se do estilo “intelectualóide”, apresentava-se como o exemplo do que é bem escrever e bem falar, sem qualquer tipo de superioridade associada, contrariando todo um sistema, como era já seu apanágio.
Resignado à minha simplicidade de escrita, inabalavelmente insistindo para que seja compreendida por qualquer ser alfabetizado (racional ou não, obviamente mais sucedido com estes últimos), cabe-me por direito avaliar a escrita e oratória de Gouveia Ferreira. Nem a lacuna de instrução superior em letras, nem a teimosia em escrever pelo “desacordo ortográfico” me tornam inepto no que à análise do grande domínio destas artes se concerne. Exaustivamente ouvi, li e convivi com o meu pai, acabando “irreverentemente” por adquirir um sentido “descrítico”, nomeadamente no que à fidalguia intelectual se aplica, sendo a valência mais válida para a veracidade do que aqui escrevo.
A escrita e oratória do Gouveia notoriamente se destacavam na precisão das regras gramaticais, onde os toques do seu famoso vernáculo (“VOC – Vernáculo do Olho do Cu”) e o seu tom “jocoso-ò-refinado” resultavam sempre em algo incomodativamente correcto. Se para alguns “roçava” o pedante/arrogante, mesmo sem qualquer justificativo, a realidade é que o domínio da arte em tudo o que escrevia e expressava era tão próprio, que todos conseguimos indubitavelmente recordar e descrever em detalhe um momento com o próprio Gouveia.
Era nessa escrita e oratória “irreproduzível” que nos agarrava aos momentos em que discursava ou escrevia, fossem estes de foro profissional, social ou pessoal. O seu “style malander” estava sempre bem vincado, e era inequivocamente identificável.
Este género de contradição, de “correctamente errado”, também se replicava na sua pessoa, sendo evidentes os seus traços quando praticava advocacia, quando se dedicava ao associativismo, nas variadíssimas intervenções em prol da Canção Coimbrã, nos momentos mais boémios, e claro, no foro familiar. A sua incansável, invejável, constante atitude do “contra”, a irreverência do seu VOC e o seu interesse pelos mais variados assuntos que se possam imaginar, eram para ele o pináculo da sua forma de expressão sobre o quanto se deliciava com tudo isto, de tudo o que era a vida, de tudo e todos os que se recordaram de um momento com ele, enquanto decifraram esta medíocre escrita, que não dizendo nada, explicou tudo.
As memórias são momentos dos quais nos damos ao luxo de viver repetidamente…
Numa altura em que faria 73 anos, consideremos esta exposição uma espécie de agradecimento a todos os que conviveram com ele, “lutaram” com ele e estiveram (ou ainda estão) presentes no luto dele. Apresento então as palavras mais “castiças” do VOC, que certamente estão na memória de muitos de vós. Direitos de autor de Manuel António Gouveia Ferreira, “Smith”, Bira-Guinadas, Gouvyas, Dr. Gouveia ou simplesmente o Manuel António.
– “acepipes variados” – Além da referência do dicionário de português que define acepipes como iguarias, era também utilizada pelo “Smith” como sinónimo “coisas várias”, “assuntos variados”.
– “armado aos cágados/pingarelho/cucos” – Alguém que por decisão não sei de quem e pelas razões não sei de que, julga que é mais do que os outros, ou está acima de alguém. Normalmente associado ao complexo de inferioridade alheia existente pelos praticantes do tal “armanço”;
– “azeitola” – Pessoa que se está a desenvolver para chegar a “lavagante”, mas ainda não atingiu a maturidade;
– “cagalizar” (verbo) – forma de expressar o medo de terceiros, sendo utilizado nas mais variadas formas. P. EX.: “O gajo já está cagalizado”, “Quando virem isto até se vão cagalizar”, “na hora de falar, cagalizou-se”. É o verbo que mais utilizava em toda a gíria, sendo até aplicado em nobres defesas de casos nos vários tribunais de Portugal;
– “cagar lérias” – Acto de opinar sobre um assunto alheio de forma aleatória e sem qualquer fundamento. Sinónimo “Mandar postas de pescada”;
– “Caralhão” – Embora haja quem associe a uma palavra obscena, no VOC é um sinónimo de grandiosidade, importância, espectacularidade;
– “desarvorar” – abalar, safar-se, desaparecer tão rápido quanto for possível e de preferência não voltar a ser visto tão cedo, seja objecto, pessoa ou situação;
– “encaralhado” – Pessoa que se encontra em situação de difícil resolução, normalmente apresentando comprometimento perante algo ou alguém;
– “guedes” – comumente conhecido no vocabulário de português por “cu”, rabo ou traseiro;
– “intelectualóide” – Pessoa que se auto classifica como extremamente erudita e intelectual, não sendo sequer tolerável para ela própria;
– “ir pó galheiro” – Fenómeno de algo se tornar inútil;
– “kona meia street” – Unidade de medida utilizada por “Smith” para definir algo que se encontra a uma distância considerável ou num lugar longínquo. P.Ex.: “Isso fica em kona meia street!”;
– “Lavagantes” – Talvez a palavra mais utilizada por Gouveia Ferreira, é o adjectivo utilizado para caracterizar um grau acima dos parolos, foleiros, “azeiteirões”. Evolução natural do “azeitola”;
– “ponta de um corno” – A unidade de medida utilizada pelo “Smith” que tem o valor mais baixo. “Não se vê a ponta d’um corno”; “Este martelo não vale a ponta de um corno!”;
– “quilhar” (verbo) – forma de expressar quando algo se estraga, destrói, ou quando alguém se coloca numa situação comprometedora. P.EX.: “Se não entregar os documentos a tempo vai-se quilhar!”. Além do seu uso informal, era também utilizado no exercício da sua profissão quando havia necessidade de deixar bem ciente que algo ia correr mal;
– “recapitular a matéria” – revisão do assunto que se está a discutir/falar;
– “style malander” – estilo próprio de vestir, estar ou socializar, normalmente popular e na “moda”. Algo semelhante ao “chico espertismo” mas com conotação positiva, que se reflecte em reacções de espanto por terceiros;
– “teoria do olho do cu” – Teoria que não tem qualquer fundamento, base teórica ou razão para existir. Provoca um desagrado geral na malta que não a compreende, resultando em reacções semelhantes às observadas quando se trata de lidar com matéria fecal, resultando daí o nome da mesma;
– “urbanóide” – designação que o Gouveia atribuía às pessoas pouco dotadas a realizar qualquer tarefa manual ou de lavoura; Pessoas que apresentavam alta probabilidade de se “quilharem” quando fora do seu habitat natural (cidade ou meio urbano).
“Adeus a todos os que lutaram pela liberdade, fica o meu eterno abraço.”
Manuel António Gouveia Ferreira, em 17 de Novembro de 2019 até sempre.
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