Famalicão
Monsenhor Joaquim Fernandes: Príncipe da Igreja e da Cidadania
Famalicão despediu-se, esta semana, de um dos seus maiores vultos do século XX. Monsenhor Joaquim Fernandes faleceu na passada segunda-feira, com 105 anos de idade. O OPINIÃO PÚBLICA recupera um artigo da autoria de Artur Sá da Costa, publicado a 1 de setembro de 2016, sobre aquele que viria a ficar para sempre no coração dos famalicenses como “o senhor arcipreste”. Um artigo que vale a pena ler ou reler.
Monsenhor Joaquim Fernandes: Príncipe da Igreja e da Cidadania
Na madrugada de 6 de janeiro de 1946, o pároco Joaquim Fernandes pedalando uma bicicleta, entra na Vila de Famalicão, e vai diretamente para a Igreja Matriz, conforme o combinado no Paço Episcopal, com D. António Bento Martins Júnior, celebrar a missa das 7 da manhã. Reconhece: “Foi para mim uma data muito importante na minha vida, pois marca o começo da minha ligação pastoral ao meu arciprestado de Vila Nova de Famalicão, à minha terra, que iria durar toda a minha vida”. A urgência fica a dever-se à doença súbita de monsenhor Torres Carneiro, o titular do cargo. Com 28 anos de idade e seis meses após a sua ordenação sacerdotal monsenhor Joaquim Fernandes assume a paróquia de Santo Adrião, da qual só se retirará em 1998, já tinha 82 anos de idade e 52 de atividade eclesiástica. Foi o sacerdote que mais tempo esteve à frente do arciprestado de Vila Nova de Famalicão e da paróquia de Santo Adrião, ou como prefere dizer: “Fui o padre que mais me aguentei em Famalicão”, e, acrescente-se aquele que mais influenciou o desenvolvimento espiritual e material da paróquia, inscrevendo no seu território as marcas mais profundas de transformação e progresso. Dá uma nova centralidade à paróquia em torno da Nova Igreja Matriz e expande a cidade à volta dos Paços do Concelho.
A IGREJA É DE TODOS
O lema “A Igreja é de todos”, adotado por monsenhor Joaquim Fernandes no seu apostolado, não é um mero slogan, desprovido de sentido ou de significado. Bem ao contrário, serviu de mote na sua pregação e de guia para a ação. E praticou-o, com todos e em quaisquer circunstâncias. Com cristãos e agnósticos, apoiantes do Estado Novo, ou da Oposição Democrática, com a elite empresarial, ou nos bairros operários de Mões, nas ruas da cidade e freguesias, com quem se cruzava ou se lhe dirigia. Esta é a ideia que dele guardamos, sempre presente, no meio das pessoas e dos acontecimentos.
Mais importante, não esqueceu os que mais necessitavam, os injustiçados da vida, derrotados pela pobreza e socialmente marginalizados. É este sentido de justiça e de solidariedade que o leva, logo nos primeiros tempos, após ter chegado à paróquia, a percecionar e de imediato combater a divisão económica e social, mais do que geográfica, instalada dentro da paróquia, fazendo de Mões um autêntico gueto. Como ele conta: “Até no toque do sino havia diferença. Se o defunto era de Mões tinha direito a menos badaladas e tocava-se menos”. Uma ação prioritária foi pôr termo a esta situação escandalosa e obscena. Ele explica: “Uma das primeiras ordens que dei ao sacristão, que era o senhor Alfredo, foi acabar com essa desigualdade (…) e disse-lhe que na igreja somos todos irmãos e com os mesmos direitos”.
São as mesmas preocupações e sentimentos, que o impulsionaram a criar, em 1972, uma extensão da Creche Mãe em Mões, com vista a “eliminar ou atenuar as clivagens sociais que se verificavam na paróquia de Santo Adrião”. E que já o tinham levado a fundar o Património dos Pobres, para construir casas para os mais desfavorecidos.
PÁROCO E CIDADÃO
Todos comungam na ideia de que monsenhor Joaquim Fernandes é um homem enérgico, determinado e persistente. Sem dúvida. Porém, dentro do seu espírito borbulha uma visão e um pensamento estratégico, que não se confinam à esfera eclesiástica, estendendo-se ao espaço público da cidadania. Este é por ventura um dos traços mais originais e cativantes da sua personalidade multifacetada, que foi determinante na concretização dos seus sonhos.
O pároco e o cidadão convivem harmoniosamente. Ainda andava a restaurar a Velha Matriz e já avisava Álvaro Marques de que “era necessário pensar numa Nova Igreja Matriz para inserir numa nova urbanização”. E quando o presidente, munido do anteplano de urbanização de Miguel de Resende, lhe aponta a Praça 9 de Abril para a sua localização, a rejeição foi célere e incisiva: “Quero-o junto à câmara e ao tribunal, como os outros quiseram”. Com a resposta, não só desarmou Álvaro Marques, como evidenciou, desde logo, uma visão estratégica no desenvolvimento da cidade, que não cabia no plano de urbanização do edil, que se afadigava em aprovar. Como não se encaixou em todos os programas dos presidentes que lhe sucederam na roda da política municipal!
A SABEDORIA DA VIDA
Se a vida de monsenhor Joaquim Fernandes não cabe num século, a obra que concretizou e o exemplo de dignidade, trabalho e dedicação ao outro, que lega às gerações futuras, perdurarão, inscritos a letras de ouro, por tempos imemoriais, nos corações de todos os famalicenses, e na memória coletiva de VN de Famalicão: a terra que lhe calhou em sorte nascer e a que adotou para viver e transformar.
Monsenhor afirma: ”Não sendo um homem da Universidade reconheço que tenho a sabedoria da vida”. Começou cedo a aprendizagem – e soube mantê-la ao longo da vida — antes mesmo de frequentar a escola, dentro da família humilde de caseiros a trabalhar a terra alheia, de forma precária, em troca de uma parte da produção, sempre incerta. Viveu esta violência, e sofreu a injustiça dos colegas e amigos de escola, que ficaram pelo caminho, impedidos de prosseguirem os estudos, dada a inexistência de escola pública. De todo impossível esquecer esta experiência, e não a ver refletida no pensamento e na ação que produziu no seu apostolado. Será porém o embate com a realidade política e social famalicense, que amalgamou no início do seu apostolado, que mais o marcou e maior contributo dará na sua formação e na solidificação das suas convicções: um clima político crispado, com lutas e cisões intestinas, dentro da Câmara e na União Nacional Concelhia, uma sociedade civil, ela também dividida, com reflexos diretos nas instituições culturais e sociais e na própria igreja. E com uma população privada do essencial, vencida pela doença e pobreza, sob o estigma da discriminação social e das desigualdades sociais.
Nesta encruzilhada, com o céu carregado de pesadelos, a opção de um pároco, a fervilhar de ideias e de projetos, e animado por um ideal de servir o próximo, e, em particular os mais desfavorecidos, estava traçada. No essencial, tratava-se de retirar a igreja da letargia e da passividade em que se encontrava. E cuidar da tentação de a pôr ao serviço de grupos e de a retirar da influência de interesses alheios. No fundo, sem perder a âncora dos princípios e dos valores, imprimir um sentido pragmático à ação da igreja. E envolver todos, quaisquer que sejam o seu estatuto, classe social ou cor política. Eis mais uma vez o pensamento a traçar o caminho de ação: “Sempre procurei trabalhar em estreita colaboração com as instituições famalicenses. Sempre entendi que, juntos, poderíamos ser mais: igreja, município, intelectuais, empresários, toda a sociedade civil”. Dirá mais: ”Nunca pretendi ser político. Mas acompanhei o que se passava”. Faltará à verdade quem o negar.
Haverá, contudo, que acrescentar: monsenhor foi um príncipe da Igreja e da Cidadania, não pela ação direta, mas pela influência que exerceu de forma discreta na classe política, e, curiosamente através do pensamento, e, designadamente, pelas ideias que defendeu para a construção da cidade, as quais influenciaram várias gerações de políticos. Ao colocar-se acima dos grupos e das fações, mostrou ser um homem de causas, que sobrevoam os ciclos e os regimes políticos, inscrevendo o seu nome na linhagem dos que sonham e antecipam o futuro. E acrescente-se, fê-lo sempre respeitando o princípio da secularidade. Este é um dos pontos fortes do apostolado do monsenhor: defender a separação da igreja do estado e pugnar pela sua autonomia, sem abdicar da sua presença na sociedade, da qual é parte integrante. Ficará para a história e entrará nos manuais da pedagogia política.
Artur Sá da Costa, Investigador
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