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Famalicão

“Estamos a viver uma Semana Santa e uma Páscoa no seu estado puro”

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Numa entrevista de fundo ao OPINIÃO ESPECIAL, o arcebispo primaz de Braga fala sobre esta nova forma de viver a Páscoa. Natural da freguesia de Brufe, D. Jorge Ortiga, que segreda que jamais vai deixar de ter um fraquinho por Famalicão, pede às pessoas que não percam o sentido profundo do que significa esta celebração e, perante a pandemia, sublinha as ajudas que a Igreja tem dado às pessoas. Por outro lado, com 77 anos e padre há 54, diz-se ainda com vitalidade para continuar a servir Deus e as pessoas.

OPINIÃO ESPECIAL: Que Páscoa é que os fieis podem celebrar este ano?

D. JORGE ORTIGA: Este ano, tal com o ano passado, estamos a viver uma Semana Santa em estado puro. O que significa isto? Se pensarmos um pouco no que mais interessa às pessoas são as exterioridades. Aqui em Braga são as procissões que atraem muitos turistas e muitos curiosos, os concertos, as exposições… são tantos eventos que se realizam a propósito. Mas corremos o risco, no meio de todas estas iniciativas que se fazem, e bem, de perdermos o sentido profundo do que é a Semana Santa e a Páscoa. Estamos a regressar ao essencial, que é lembrar-nos que Cristo morreu para os outros terem vida.

Na verdade, esta Semana Santa da Paixão e Morte de Cristo, que decidiu dar a vida pelos outros, tem que ser prolongada pelos Cristãos. E este é o grande desafio lançado aos cristãos e que não podemos desvirtuar. Hoje precisamos de reconhecer os caminhos da humanidade, uma humanidade ferida, para neles mergulharmos e fazer algo pelos outros. Se formos capazes de estruturar o nosso mundo de forma diferente, o mundo da justiça, igualdade, fraternidade, isto vai-se multiplicando e a sociedade ficará diferente.

Se todos olharmos atentamente para a sociedade, de facto, vê-se muita coisa material, muita evolução, mas há uma certa insatisfação. Acho até que vivemos tristes. No intimo, será que nos sentimos verdadeiramente realizados, felizes, com vontade de viver? Não sei. Interrogo-me muitas vezes sobre isto.

Acha que esta pandemia ajudou a que as pessoas se interrogassem mais sobre essa realização, felicidade de viver?

Eu acho que sim. Se não ajudou deveria ajudar. Eu costumo dizer que a pandemia nos trouxe duas grandes verdades: por um lado, a vulnerabilidade, a debilidade a fraqueza. Este vírus, por exemplo, é igual para todos, sejam ricos ou pobres. Outra certeza e verdade desta pandemia é que, desta debilidade, saímos só de mãos dadas. Não é por acaso que usamos máscara, temos cuidados, por nós e pelos outros. Eu salvo-me, salvando os outros. Eu condeno-me, condenando os outros.

O ano passado pediu aos sacerdotes diocesanos que contribuíssem para o Fundo Partilhar com Esperança com o equivalente a um ordenado para que “esta Páscoa seja uma Páscoa de páscoas”. A intenção era ajudar as pessoas com fome, desempregados… Os sacerdotes ouviram o seu pedido?

Esse fundo já existe desde 2008 e que nasceu, precisamente, num ambiente de crise. Esse fundo desenvolveu-se, foi-se alargando e hoje trata-se de um fundo social da diocese para o qual todos devem contribuir e colaborar, a começar pelos sacerdotes. O ano passado fiz esse pedido no sentido de rejuvenescermos esse fundo, num momento que tanta gente precisa. Estamos também a criar um portal de donativos para quem quiser ajudar. O que é certo é que a diocese de Braga tem respondido a imensos problemas sociais, que nos batem à porta quotidianamente. Hoje há alguma pobreza estrutural e que tem resposta mais ou menos oficial. Nós, diocese, sentimos a vida das pessoas e há muita gente que vem ter connosco por vergonha.

Tenho muita consideração pela pobreza e sou muito sensível, mas se há pobreza que me impressiona é a envergonhada. Há muita gente que já viveu até com alguns sinais exteriores de riqueza e que hoje não tem receitas mínimas para poder sobreviver. E este Fundo Partilhar com Esperança serve, na sua maioria, para pagar rendas de famílias e medicamentos.

Isto significa que recebem muitos pedidos de ajuda?

Recebemos muitos pedidos de ajuda. Crescem de dia para dia e não podemos acudir a todos. Recebemos pedidos particularmente nesta linha da pobreza envergonhada. Por isso pede-se a todos os cristãos que possam contribuir, que o façam.

Assumiu uma posição que muitos querem ver na Igreja, ao referir que a Igreja não se pode ficar pelo “mero exigir às pessoas”…

Exatamente. É mesmo isso. Muitas vezes ficamos no exigir, no pedir. Temos que o fazer, mas mostrando que também nós, diocese, estamos comprometidos nesta causa, de fazer o bem aos outros. Não bastam as palavras. Temos que passar da palavra para a obra. Por isso é que me envolvo a mim e lanço este desafio aos sacerdotes. Tenho que dizer, em nome da verdade, que um ou outro sacerdote não o faz, mas a grande maioria já tem esta sensibilidade. Os padres também são generosos e dão muito às suas paróquias, às causas e à diocese.

Não nos focando apenas na Páscoa, de que forma é que a Igreja está a viver esta fase tão estranha e difícil da pandemia? Falamos do cancelamento das missas, cerimónias religiosas, procissões, nomeadamente da Semana Santa…

Eu gosto de desafios e a pandemia tem sido um desafio permanente. Todos gostamos de ter uma vida programada, mas neste caso temos que ir gerindo, momento após momento, e procurando responder. Penso que não temos desistido da nossa missão, não temos cancelado, não temos fechado a Igreja, a não ser fisicamente.

Não chegamos ao mesmo número de pessoas, chegamos sim a um número ainda maior. Podemos não conseguir chegar às pessoas mais simples e humildes, que habitualmente também enchem as nossas igrejas, mas através dos meios digitais, que é uma Graça ao fim e ao cabo, temos penetrado em todas as casas. São imensas as pessoas que nos vão agradecendo todas as iniciativas que temos feito. Por exemplo, este ano, nas horas que as procissões da Semana Santa iriam para a rua em Braga, vamos fazer, de forma digital, uma explicação do que é a procissão e o que significa. De certa forma a procissão vai sair à rua e vai entrar na casa das pessoas.

O D. Jorge jamais imaginaria ver-se, um dia, nessa posição de presidir a uma eucaristia com a igreja vazia…

Não imaginam como é difícil celebrar a missa numa catedral, habitualmente cheia, e não termos ninguém que nos responda. Quase nos sentimos sozinhos. É o reconhecer que a fé é qualquer coisa que acontece dentro. É um exercício contínuo e permanente.

Descobriu uma parte nova de si? Um sentimento que nunca havia experimentado?

De certa forma sim. Nesses momentos lembrei-me muitas vezes daquela imagem do Papa Francisco, na Praça de S. Pedro, completamente sozinho. Foi naquela altura que ele lançou aquela expressão que estamos todos no mesmo barco. A tempestade ainda está aí e ou nos salvamos todos ou nos condenamos todos. Para mim foi uma imagem que ficou porque me tem ajudado a refletir. É que neste barco onde estamos todos existem diversos quartos: há a primeira classe, suites, e outros estão lá no fundo. Esta desigualdade ainda existe na sociedade e está cada vez mais marcada. Estamos todos no mesmo barco, é certo. Mas nem todos temos as mesmas condições e oportunidades.

Desde sempre que a Igreja tem sido referida como exemplar na gestão da pandemia. É algo que o deixa satisfeito, naturalmente?

Foram feitas muitas alterações com muito custo, mas claro que fico satisfeito. Nós fechamos as igrejas quando ninguém nos mandou fazê-lo. Fomos nós que tomamos a iniciativa, conscientes da responsabilidade que tínhamos. Eu penso que essas referências são um reconhecimento, que julgo que veio de todos, nomeadamente da sociedade portuguesa. Mas mesmo que esse reconhecimento não existisse, nós íamos continuar a tomar medidas para cumprir o nosso dever.

E em relação à própria Igreja, esta pandemia também teve impactos financeiros?

Não esqueçamos que a Igreja vive daquilo que as pessoas dão. A Igreja não tem dinheiro. Há pessoas que dizem que a Igreja é rica, mas não há consciência ao dizer isto. A Igreja pode ser rica porque ao longo de todos estes séculos foi adquirindo um determinado património e não há paróquia nenhuma que não tenha uma igreja e não tenha vaidade em fazer com que esteja devidamente conservada. Lembro-me também dos centros sociais, que é uma obra maravilhosa e a diocese de Braga tem quase 200. Claro que esta situação de pandemia, sem a eucaristia, sem os peditórios habituais, sem a Páscoa, sem os Compassos… é impossível não sentir essas dificuldades.

Pessoalmente, de que forma é que está a passar, enfrentar este confinamento?

Tenho procurado cumprir todas determinações e fazendo com que os outros cumpram. Permanentemente, vou alertando os sacerdotes que nos espaços das igrejas tudo seja observado com o máximo rigor, de tal modo que as igrejas ou os espaços de atividades culturais não sejam motivo de qualquer contágio. Devemos cumprir escrupulosamente.

Evidentemente que não me tenho furtado aos meus deveres e às minhas obrigações. Sempre que possível estou presente a celebrar as eucaristias. Senti, mesmo quando os espaços estavam fechados, que a Igreja não se podia fechar. Tinha que continuar a lançar a sua mensagem e não renunciar ao que é a nossa missão, o nosso dever de procurar dar, neste tempo de tanta solidão.

Da minha parte tentei encontrar-me com as pessoas, através de telefonemas, vídeo conferências, que foram imensas, mensagens. Creio que nunca escrevi tanto como nesta altura. Tenho uma preocupação constante de encher a vida com presença. Nós, Igreja, perante esta adversidade, não podemos cruzar os braços. Há muito para fazer e temos a missão de gerar a esperança.

Nasceu a 5 de março de 1944, fez recentemente 77 anos. Ainda se sente com vitalidade para continuar à frente da diocese nos próximos anos?

Nasci naquela terra bonita de Brufe, o que me faz amar esta terra, mas também Famalicão de uma forma geral. Há sempre um fraquinho e se há coisa que tenho pena é de passar pouco tempo em Famalicão.

Quanto à minha idade, graças a Deus que vou tendo alguma saúde. O que é certo é o que o Direito Canônico determina que aos 75 anos se apresente o pedido de resignação ao Papa. Já o fiz há dois anos e neste momento estou à espera que ao Papa escolha e nomeie um outro arcebispo. Isso é o inevitável da vida.

Por temperamento, por feitio e também por vocação não me sinto de braços cruzados. Se me pergunta o que é que vou fazer a seguir terei que lhe dizer com toda a sinceridade que não sei. Não gosto de mergulhar no futuro, gosto de viver responsavelmente o presente. Sei que naquela altura e naquele momento irei discernir sobre o que irei fazer, procurando ir gastando o resto das minhas energias ao serviço deste povo que eu sempre amei.

Uma mensagem final para os fiéis…

Na celebração da Páscoa há um misto que é preciso conciliar e equilibrar. No Minho, a Páscoa é caraterística pela junção da família num âmbito mais alargado. Beija-se a Cruz na casa da família, dos amigos e dos vizinhos. Nós precisamos disso, desse encontro e convívio. Mas é preciso muita coragem e organizar a vida de maneira a que não existam essas concentrações, a começar pela refeição familiar.

Por isso, neste momento é importante darmos à Páscoa o sentido que tem. É esta certeza de que Cristo ressuscitou e este grito que Cristo Vive e Quer-te Vivo. Ele quer que vivamos, na plenitude, com um sentido de vida pautada pelos valores, com um projeto, alargando os nossos horizontes para o mundo inteiro.

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